sexta-feira, 17 de abril de 2020

"A FAMÍLIA DE LÉGUA TÁ TODA NA EIRA"

Tramas de parentesco nas relações entre pessoas e encantados
Martina Ahlert (UFMA/ Maranhão/ Brasil)



Na região dos Cocais, no leste do Maranhão (nordeste brasileiro), se localiza um município chamado Codó. Com cerca de cento e vinte mil habitantes, ele é conhecido no âmbito da literatura local sobre religiões afro-brasileiras e encantaria como o espaço de referência dos encantados da mata, do povo de Codó, da família de Légua Boji Buá (COSTA EDUARDO, 1948; BARROS, 2000; FERRETTI, 2001; ARAÚJO, 2008; AHLERT, 2013). Essas referências falam sobre um conjunto heterogêneo de seres comumente denominados como encantados, que são recebidos nos corpos de pessoas por intermédio da incorporação, mas também notados em diferentes sensações, vistos em sonhos ou materializados em lugares e objetos que os pertencem.

Encantados são seres mais que humanos que, no passado, foram pessoas. Sua mudança de estatuto aconteceu diante do seu desaparecimento (sem morte), momento em que se encantaram, passando a viver em um entre mundo de localização não exata chamado de Encantaria. É desse contexto que se deslocam para o plano humano de existência, onde se fazem presentes para trabalhar, aconselhar, dançar e acompanhar determinadas pessoas. Em Codó, os encantados são recebidos no cotidiano e também nos rituais de uma religião afro-brasileira denominada Terecô ou Tambor da Mata, que, por sua vez, se organiza em torno de tendas de pais e mães de santo.

O encantado mais conhecido do Terecô de Codó é Légua Boji Buá da Trindade, tido por alguns como de origem nobre, mas também como um importante vaqueiro, aguerrido e apegado à confusão, valente, duro e consumidor de bebida alcoólica. Légua Boji Buá comanda uma importante e numerosa família de encantados que, segundo relatos, somam mais de quinhentas entidades. Família é, segundo Mundicarmo Ferretti (2000), uma das formas de organização das entidades maranhenses, que ainda podem ser definidas por sua referência a linhas – como a linha da mata, onde estariam classificadas as entidades de Codó - ou por referência a áreas geográficas.

Evidentemente, essas classificações apresentadas pela literatura são menos fixas do que se sugere, podendo ser combinadas de maneiras diversas nas experiências das pessoas. Neste texto eu pretendo pensar as relações entre pessoas e encantados a partir de dois casos onde estes seres se cruzam em tramas de parentesco. Na sequência da apresentação destes dois casos, sugiro que podemos pensar nas modalidades de relação entre encantados e pessoas dando atenção à ideia de constituição da família, cuidado, geração e noções de liberdade ou ausência de escolha. Pretendo mostrar como existem similaridades e contribuições entre famílias de encantados e de pessoas, e não apenas competição ou obrigações (aspectos bastante destacados na bibliografia sobre a encantaria maranhense – ver FERRETTI, 2000; BARBOSA e BARROS, 2004; CUNHA, 2013) – de forma que encantados e pessoas estão unidos em ações para combater a solidão que ameaça à vida. Para tecer tais considerações, parto de uma pesquisa etnográfica que realizo na cidade há pouco mais de cinco anos, quando tive meu primeiro contato com o Terecô de Codó e com seus encantados. Desde o início peço desculpas pelo caráter ainda experimental do texto.

Constituindo famílias

Pessoas e encantados possuem famílias. As famílias dos terecozeiros e as famílias dos encantados não são consideradas idênticas. Elas são diferentes, especialmente porque os encantados tem um poder de agênciar diversos humanos. Entretanto, há pontos de aproximação e semelhança entre ambas. Em Codó, o parentesco entre as pessoas é marcado por uma noção de família não substantiva, aberta e possível de ser continuamente modificada, que pode ser ‘aumentada’ e ‘diminuída’ dependendo do momento e do comportamento dos familiares. A possibilidade de fazer parentes – de incluir pessoas na família – torna-se evidente nos filhos de criação, bastante comum nas casas da cidade. A criação de filhos não biológicos e a circulação de crianças (FONSECA, 1995; GODOI, 1999) é recorrente em Codó, e pode se dar entre membros da família (consanguínea ou afim) ou ainda entre pessoas conhecidas, mas sem laços de parentesco. A prática é tradicional e perpassa diferentes gerações, ganhando importância em virtude dos casos de migração para outros estados do Brasil – quando, normalmente, o adulto que migra não leva seus filhos, os deixando em Codó, para serem criados por familiares ou por conhecidos. Essa pretensa maleabilidade (DA MATTA, PRADO E MOURÃO SÁ, 1975) não subtrai a importância dada à família e aos parentes, aspecto fundamental nas relações cotidianas e também na atribuição de sentido às experiências da vida (BOURDIEU, 1997).

Espera-se que as pessoas de uma mesma família – estejam ou não vivendo próximas e sendo ou não consanguíneas – cuidem umas das outras. Isso se torna mais visível em momentos de doença onde é comum, por exemplo, receber em casa algum parente que vive distante e precisa de tratamento médico na cidade. Espera-se ainda que a família sempre se lembre de seus parentes, colocando fotos nas paredes da sala, colecionando lembranças de nascimento e morte ou ainda cultivando a memória nas visitas ao cemitério quando do falecimento de alguém da família. Por fim, se espera ainda de um membro da família faça companhia, visite, ajude na organização de rezas e festejos. É em nome da família que são legitimadas e justificadas as decisões tomadas pelos sujeitos, como mudança de local de moradia, transformações no espaço doméstico, sacrifícios de tempo e dinheiro. Não compreender essas relações pode levar ao sentimento de uma diminuição da família, pois enquanto coletivo, ela se constitui das interações (ainda que à distância, ainda que com espaços de tempo consideráveis) entre seus membros (LATOUR, 2012).

As entidades, por sua vez, também possuem diversas relações de parentesco entre si. Os encantados têm família e costumam fazer referência a ela para se apresentarem, como o ponto cantado que segue, de uma entidade filha de Légua Boji:

Eu sou filho de Légua
Eu venho do sul carnaubeiro
Eu selo meu cavalo é no tope da ladeira.
(LAMY, 2016).

Venho dizendo que a família mais conhecida em Codó é de Légua Boji Buá da Trindade, encantado que tem pai, irmãos, sobrinhos, esposa, além de grande número de filhos e netos. Seu Zé Preto, um pai de santo da cidade, me disse que Légua é filho de Pedro Angaço e casado com Rosa Rainha6, hoje não “carregada” por ninguém em Codó. A grande família de Légua compartilha a relação com a mata, o gosto pela bebida alcoólica (poucas vezes vi algum encantado da família de Légua não beber), como fica evidente em alguns pontos cantados no salão, como, por exemplo, o que dá nome ao título deste texto:

A família de Légua tá toda na eira
A família de Légua tá toda na eira
Bebendo cachaça e quebrando barreira
Bebendo cachaça e fazendo poeira.

Apesar dos membros de uma família compartilharem características, eles não são uma grande categoria homogênea. Uma diferença entre os membros da família de Légua, por exemplo, remete ao fato de alguns dos seus encantados saberem ler e escrever, enquanto outros não dominam estes conhecimentos. A diversidade interna à família se torna ainda mais evidente quando percebermos que suas origens podem ser diversas, haja vista a possibilidade de existirem filhos de criação ou adoção entre os encantados. A criação de membros que chegam à família foi contada, em campo, por alguns encantados, que comentaram sobre o parentesco de sangue e o de consideração. Em um encontro entre Coli Maneiro, Ricardo Légua, Rei de Mina e Caboclo Cearense, Ricardo Légua nos disse:

Eu, Ricardo Légua Ferreira da Trindade Boji Buá, sou sobrinho de Colin Maneiro Ferreira da Trindade. Coli Maneiro é irmão de meu pai. Então é assim, nós é parente como vocês aqui na terra do pecado, não tem parente de sangue? Pois eu mais Coli Maneiro é parente de sangue. É assim, não é que eu respeito menos ele ou que ele me respeita menos, é assim, ele é meu tio (Ricardo Légua, agosto de 2011).

Segundo Ricardo Légua, há similaridades entre a forma com que se organiza o parentesco no “mundo do pecado” e na Encantaria, onde existem tanto os laços de sangue como laços de consideração - quando não há consanguinidade, mas existe convivência e cuidado. Nesse mesmo dia, Ricardo Légua contou que Rei de Mina, além de guia do salão localizado na Morada Nova (local do terreiro aonde vinham dançar) era filho de Coli Maneiro (irmão de Légua Boji) e com ele aprendeu a consumir bebida alcoólica. Caboclo Cearense, que também estava presente, segundo Ricardo, “é meu tio, é primo de Coli Maneiro e de meu pai Légua Boji Buá. Nós somos de uma descendência só, de uma família”.

A situação de encontro entre esses encantados era também o encontro entre pessoas de uma mesma família, pois, seus cavalos eram Zé Willan (pai de santo de Morada Nova que carregava Coli Maneiro), Regina (sua esposa, que recebeu Ricardo Légua), Alzira (tia de sangue de Regina que estava com Rei de Mina) e a filha mais velha do casal (com Caboclo Cearense). É diante dessas articulações que eu narro, em seguida, histórias nas quais a biografia das pessoas se entrelaça com a presença dos encantados. Os dois casos que apresentarei chamam atenção para a amplitude do contato com as entidades na vida das pessoas e para a impossibilidade de contar seus percursos de vida sem lançar mão dessas presenças (CARDOSO, 2007). Demonstram ainda a insuficiência das narrativas que relaciona m o religioso com apenas parte da vida de um sujeito e destacam as modalidades de relação entre pessoas e entidades (AHLERT, 2016).

Dona Chica Baiana, Pedro e Seu Gili

A primeira história que eu gostaria de contar é a de Pedro. Conheci Pedro no segundo semestre de 2010, quando fui viver na cidade de Codó para o campo da minha tese de doutorado. Ele tinha pouco mais de trinta anos e morava na casa de sua mãe, Dona Janoca. No mesmo espaço, entre seus sobrinhos e outros parentes, havia dois quartos dedicados às entidades: Dona Chica Baiana e Dona Maria Padilha respectivamente ocupavam o quarto da entrada da casa e o do fundo do pátio. As duas senhoras constituíam parte do conjunto de entidades que Pedro recebia – tanto ele como qualquer outro terecozeiro recebe mais do que uma entidade durante sua vida (ou mesmo durante uma mesma noite).

Os encantados sempre fizeram parte das histórias de Pedro e o acompanham desde que nasceu. Segundo me contou, o seu parto foi feito por Dona Chica Baiana, encantada do seu avô, “em cima” dele – ou seja, nele incorporada. Segundo a mãe de Pedro, Dona Chica acompanhou todo o crescimento do menino, período em que pregava peças escondendo a criança pela casa para que a mãe não a encontrasse. Ainda na infância Pedro sentiu os primeiros sinais de mediunidade, quando via diversas coisas que o assustavam, o faziam gritar e chorar. Diante dessas manifestações, Pedro foi acompanhado pelo avô a partir dos sete anos de idade. Nesse momento, junto com um primo, passou a residir e ser criado na casa de Seu Gili – como era conhecido seu avô, um afamado brincante do tambor, padrinho de importantes casas de Terecô de Codó.

Os dois meninos conviveram com a familiaridade com que o avô se relacionava com as tendas e as brincadeiras e Pedro se lembra de ouvir quando ele, depois de colocá-los para dormir, saia para dançar Terecô. Recorda-se, ainda, de segui-lo, atrás do som dos tambores, para assistir os toques e giras. Neste período as crianças não podiam brincar dentro dos salões (até hoje é raro encontrar alguma criança participando) e Pedro se lembra de ser reprimido pelos encantados do avô que acreditavam que ele era muito novo para dançar. Outros encantados, porém, logo percebiam sua mediunidade, enrolavam-no nas suas saias e o levavam para dentro do salão. Pouco tempo depois, quando Pedro tinha nove anos de idade, Seu Gili faleceu.

Depois de sua morte, a encantada Chica Baiana passou para a croa de Pedro, ou seja, passou a ser recebida pelo menino. Dona Chica Baiana está na vida da minha família há muitos anos. Acho que mais de cem anos. Desde minha bisavó, mãe do meu avô, que chamava de Catita e que morreu com noventa e oito anos. Mas, quando morreu ela já tinha preparado meu avô para cuidar da missão dela na terra. E quando eu tinha sete anos meu avô me preparou, mas acho que Dona Chica Baiana me acompanha desde o ventre da minha mãe, porque quando eu nasci, a parteira que me pegou foi Dona Chica Baiana, incorporada em meu avô (Pedro, 24 desetembro de 2011).

Aos dez anos, Pedro já trabalhava com os encantados, cuidando de pessoas da família. Ele é um dos casos – existem outros na cidade – de pessoas que não foram ‘feitas’ ou preparadas por nenhum pai de santo (SANSI, 2009). Segundo me contou, ele foi “zelado” por uma pessoa de mais tempo na religião, mas nunca precisou de pai de santo “porque já vem toda uma preparação de fundo”. Em virtude disso, se refere à Dona Chica Baiana, encantada herdada do avô, como sua mãe de santo. 

Durante meu campo, a irmã de Pedro, que vivia na mesma casa que ele, teve um filho. Durante toda a gravidez, Dona Chica Baiana esteve rezando, benzendo e tratando com remédios a barriga da futura mãe. Segundo a própria Chica me confessou, ela estava “segurando” a gravidez diante de uma ameaça de eclampse9. As pessoas da família do pai de santo, que foram para a maternidade no dia do parto, viram a encantada – vestida de branco, de lenço na cabeça – entrar no espaço hospitalar e acompanhar todo o nascimento do menino. Ela estava presente em espírito e não incorporada, como me explicaram.

Coli Maneiro, Dona Regina e Seu Zé Willan

A segunda história que eu gostaria de contar é de Dona Regina e Seu Zé Willan. Dona Regina e o pai de santo Zé Willan são casados e vivem em um povoado do município de Lima Campos, chamado Morada Nova. Ambos possuem, em suas famílias de origem, pessoas com “mediunidade”, que dançavam terecô em Codó, município onde viviam anteriormente. A família de seu Zé Willan é do povoado de Santo Antônio dos Pretos, zona rural de Codó, mesmo local de onde vem o avô de Pedro, espaço considerado de encantaria forte.

A história do casal tem os encantados e os festejos de santo como elementos centrais. Na gravidez de Regina sua mãe teve problemas com a gestação e o médico antecipou os riscos de morte da mãe e da criança. A avó materna, chorando por causa do prognóstico, encontrou o encantado Coli Maneiro, irmão de Légua Boji (em cima de um cavalo antigo e muito conhecido, hoje falecido), em uma festa de tambor na casa de Antoninha (casa onde o avô de Pedro era padrinho). Segundo conta Regina, Coli conversou com sua avó:

Aí Seu Coli disse pra ela [a avó], que ela [a mãe] não ia morrer, que eu ia nascer e que eu ia ser dele. Assim a mamãe conta que eu ia ser dele. Aí eu acredito que eu ia ser mesmo, porque o mundo dá muitas voltas, que hoje eu estou aqui, cuidando dele (...) Mas quem ajeitou tudo, quem fez todo o processo para que eu nascesse, foi ele (Regina, 25 de setembro de 2011).

Correu tudo bem no parto da mãe de Regina e ela cresceu sem apresentar sinais de “mediunidade”, participando dos festejos de tambor apenas nos dias em que havia ‘baile dançante’, para se divertir com os amigos e namorar. Seu pai e sua mãe, contudo, dançavam Terecô e cozinhavam em uma tenda que tinha um tamborzeiro muito afamado, conhecido como Zé Willan. Em 1992, impressionada com as falas sobre a notoriedade do tamborzeiro, Regina acompanhou os pais no festejo de santo, para ver de quem se tratava. Quatro anos depois os dois estavam casados.

Seu Zé Willan, por sua vez, nasceu, segundo conta, no período de um festejo de santo, em um parto acompanhado por algumas entidades. Ele recebeu um encantado de herança do seu pai, Coli Maneiro – o mesmo encantado que cuidara do nascimento de Regina e que havia dito para sua avó que a criança da gestação de sua filha viveria e “seria dele”, pois estava destinada a lhe cuidar no futuro. Como se casou com um pai de santo que recebe o encantado, Regina acredita que seu casamento é resultado desta trama entre pessoas e encantados. Anos depois, Regina também manifestou “mediunidade” e passou a receber o encantado de sua mãe, Ricardo Légua. Ricardo é filho de Légua Boji e, portanto, sobrinho de Coli Maneiro.

Tramando cuidados, referências e heranças

As histórias, brevemente apresentadas acima, sobre o percurso de vida de alguns terecozeiros, mostram a família como central na definição de como essas pessoas vão se constituindo e dos caminhos que suas vidas vão tomando. A partir delas, eu gostaria de destacar cinco pontos que me parecem interessantes para falar sobre a importância da constituição das relações sociais nas quais os encantados se integram, não apenas como participantes, mas como figuras ativas.
O primeiro ponto que eu gostaria de destacar são as relações intergeracionais que são operadas por intermédio do contato entre pessoas e entidades (RABELO, 2014). Chica Baiana relaciona Pedro diretamente ao seu avô, seu Gili, na medida em que, depois do falecimento dele, passa a ser recebida pelo neto. Coli Maneiro, encantado de Seu Zé Willan, era recebido pelo seu avô e pelo seu pai, até chegar à sua croa. Regina, por sua vez, recebe um encantado que passava em sua mãe. Os encantados, nesse âmbito, transitam entre gerações familiares, trazendo consigo conhecimentos (pois são ancestrais) e ao mesmo tempo aprendendo coisas novas (pois suas histórias não estão fechadas). Se levarmos a sério a compreensão de que eles participam na constituição das pessoas (AHLERT, 2016), podemos sugerir que eles conectam substâncias e energias entre mortos (cujos corpos já compartilharam) e vivos.

O segundo ponto que proponho pensar está relacionado com o primeiro, pois, a partir dessas relações intergeracionais e da movimentação dos encantados, podemos falar sobre a constituição das pessoas e da forma como se entendem e se posicionam. Seu Zé Willan e Pedro, desta forma, não apenas recebem os mesmos encantados que seus antecessores familiares, eles também retomam seus pais e avôs para falar de sua presença no Terecô. É neste sentido que acionam a relação de suas famílias com locais conhecidos como de encantaria forte e costumeiramente trazidos, em Codó, para falar do início da religião no local – como Santo Antônio dos Pretos. Os encantados e os lugares a eles relacionados fazem parte de narrativas que constroem um lugar no mundo e os espaços de referência para a constituição do que Pedro e Zé Willan são – eles que nascem pela mão dos encantados e são por eles acompanhados durante a vida.

O terceiro ponto desencadeado pelos casos acima descritos remete ao papel de cuidado desempenhado pelas entidades. Normalmente, mesmo em conversas nos rituais, as pessoas destacam o aspecto ‘duro’ da relação entre pessoas e encantados, apontando para as diversas obrigações que são necessárias e para os castigos presentes no descumprimento dessas mesmas obrigações. Já nos dois casos aqui mencionados, os encantados aparecem em momentos de cuidado - é desta forma que vemos Chica Baiana e sua relação com a irmã de Pedro diante dos riscos de sua gestação, assim como no momento do parto no hospital. Também há cuidado na preocupação de Coli Maneiro com a gravidez da mãe de Regina – momento em que a vida da gestante e da criança estavam em risco. Isso não acontece apenas nessas duas narrativas, pois, em Codó, os encantados são presenças constantes nos momentos de nascimento (alguns são conhecidos como parteiros) e também de falecimento – quando vêm para se despedir e chorar a morte, antes de, eventualmente, serem recebidos como herança por outro membro da família ou pessoa próxima.

Em quarto lugar, para indicar o papel ativo dos encantados na constituição das famílias, sugiro que eles são propulsores da inclusão de novas pessoas entre os parentes. Pedro, em uma conversa que tivemos, proferiu um agradecimento aos encantados que recebia, não apenas por cuidarem dele, mas de todos “aqueles que fazem parte da casa, que chegam como clientes, mas terminam fazendo parte da família”. Sua irmã tinha me dito algo semelhante havia pouco tempo, ao me contar que Dona Chica Baiana, através dos atendimentos, possibilitava a convivência intensa de alguns clientes com a família do pai de santo – convivência que os fazia continuar frequentando a casa depois de encerrarem seus tratamentos.

Por fim, o quinto ponto remete ao entrelaçamento de noções de liberdade e/ou ausência de agência (JOHNSON, 2014) – questões interessantes se pensadas em relação ao parentesco, muitas vezes tomado como ‘natural’ e não como escolha (STRATHERN, 1991). Quando o encantado Coli Maneiro afirmou à avó de Regina que a gravidez de sua filha seria levada a cabo e que a criança seria dele – o que para Regina havia se concretizado, pois ela se casou e era ajudante de um cavalo que o recebia – ele fazia uma previsão sobre seu futuro. No Terecô se compreende que a mediunidade é algo que vem com o nascimento, como uma espécie de destino ou mesmo sina. As intervenções das entidades, normalmente, não podem ser previstas ou controladas pelas pessoas que precisam se submeter à negociação com os encantados. Uma participação importante de alguém da família diante da manifestação de mediunidade é segurar os encantados para que uma criança não precise se preocupar com eles muito cedo. Os familiares são, nesse sentido, mediadores da relação entre determinadas pessoas (especialmente as crianças) e as entidades – e assim, buscam construir estratégias diante do chamado e da necessidade do brincar Terecô.

Nos casos aqui contados, portanto, os encantados não são seres distantes. Eles são uma forma utilizada pelas pessoas para falar sobre si, dada sua presença constante (uma forma de falar sobre a identidade, sobre o casamento, sobre as escolhas). Como durante a vida de um terecozeiro ele se relaciona com muitas entidades, elas constituem parte importante dos seres com os quais uma pessoa se relaciona em sua trajetória. Além disso, elas também podem ser percebidas como agentes no adensamento das relações sociais entre as pessoas. Entre meus interlocutores, era comum ouvir que a pior coisa que poderia acontecer com uma pessoa era a solidão. 

Uma pessoa que estivesse viajando sozinha, morando em outra cidade a trabalho ou que vivesse longe da família, era fator de preocupação e mesmo de pena. Quem não tem família, não tem parentes e não tem encantados que o acompanham, não tem quem cuide ou dele se lembre. Para evitar a solidão, pessoas e encantados trabalham ativamente.

Considerações finais

Neste artigo, de forma ainda muito inicial, busquei apresentar elementos para pensar, através do parentesco, as relações entre pessoas e encantados. Nesse sentido, utilizar no título o termo ‘tramas’ remete tanto ao entrelaçamento dos fios que constituem as histórias (como um trançado entre pessoas e entidades diversas que se cruzam e necessitam umas das outras para se constituírem) quanto remete às tramas de um enredo que, tal como em um filme ou novela, se compõe de narrativas que dão sentido aquilo que vivem os brincantes do Terecô.

Busquei pensar as relações entre pessoas e entidades sob a chave da família e não da constituição da pessoa, o que me fez acionar casos onde os encantados desempenham funções importantes, como parteiros e cuidadores, como aqueles que contribuem para o aumento das famílias e fornecem características a partir das quais os sujeitos de definem e falam sobre si. Os encantados contribuem, nesse sentido, para manutenção de relações sociais já existentes dentro das famílias – destacando elos, reforçando ligações – mas, também permitem o aumento das famílias, a constituição de novas relações e o incremento do número de pessoas nos contatos cotidianos.

Ao fazer isso, eles ajudam a evitar a solidão, sentimento temido e indesejado na vida das pessoas. As famílias (em seus múltiplos formatos), portanto, são instrumento ou laço importante que precisa ser sempre reafirmado nas ações dos sujeitos, pois a solidão é sempre uma possibilidade nas suas vidas. Para combater essa ameaça, é preciso cuidar, fazer companhia, lembrar-se das pessoas e, para tanto, vivos, mortos e encantados são mobilizados.

Todos os direitos reservados a autora: Martina Ahlert (UFMA/ Maranhão/ Brasil)
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