“Quando os nagôs chegaram, já
tinha aqui trabalhos de pajelança, coisa de encantaria, o espaço “celeste” já
era habitado, e como agradecimento por serem recebidos nessa terra estranha,
acolheram esses visitantes na virada pra mata, quando se interrompe a louvação
às entidades africanas e o tambor “vira”, permitindo a manifestação dos
caboclos, que então cantam em português.
Encantados no mar, nas matas,
Ilhas, croas, árvores, rios, pedras e serras, formam uma outra geografia
maranhense que elimina os limites do espaço físico e mítico. A praia dos
Lençóis, a Ilha dos Caranguejos e a pedra de Itacolomi são a moradas de encantados
onde todo mundo vai passear. Transformam o tempo cronológico em “social”, onde
figuras das mais diferentes épocas e países se encontram e se relacionam.
Vencem a morte desaparecendo “vivos” no momento do encante, e suas biografias
continuam em construção. Burlando conceitos como céu e terra, vida e morte,
santos e pecadores, os caboclos realizam plenamente no plano espiritual a
miscigenação étnica brasileira, com a naturalidade desconcertante de uma
religião voltada para a ancestralidade.
Fidalgos europeus, cristãos,
turcos, judeus, ciganos, índios, piratas, boiadeiros, pretos velhos, princesas,
marinheiros, mães d’água, botos, caboclos mestiços vindos de toda parte, na
Mina “desce todo tipo de gente”. São várias linhas, nações e regiões que se
Interligam e interrelacionam em inúmeras variantes.
Rei da Turquia, o Ferrabrás de
Alexandria da História do Imperador Carlos Magno e os doze pares de França,
chefia uma família imensa de encantados, da qual fazem parte outros personagens
dessa estória como seu cunhado Guy de Borgonha e sua irmã Floripes, que chefia
os Borgonhas, um dos três ramos da família Turquia.
“Seu” Turquia veio para o Brasil
no navio encantado e seu primo D. João, o fidalgo português, após ser derrotado
na guerra dos cristãos contra os mouros. No entanto, ao portar no Outeiro da
Cruz, onde o navio era visto por muitos nas festas do Terreiro do Egito, D.
João zarpou deixando lá seu primo, que andando pelas imediações chegou na
aldeia em festa de Caboclo Velho, Rei dos Caboclos, o primeiro a “bradar” no
Tambor de Mina, de família numerosa e chefe da linha de Jurema Branca.
Convidado por este, estabeleceu-se ali tornando-se seu grande amigo, onde
adotaram filhos um do outro, ficando tão ligados que os Ramos, outra das
famílias turcas, são chefiados por Caboclo Velho, e vários filhos do Rei da
Turquia adotaram nomes indígenas como Juracema, guia de Pai Euclides, seu irmão
Jaguarema, um anti-cristão convicto que zomba dos santos, Iracema e Ubirajara,
no melhor estilo romântico indigenista.
Tabajara, outro filho de”Seu”
Turquia que é o chefe dos caboclos na Casa Fanti Ashanti, lutou na guerra do
Paraguai, onde ferido em combate foi socorrido pela índia Bartira, com quem se
casou. Bartira por sua vez é irmã da Cabocla Jurema, cearense, e grande amiga
de Balanço das Águas, nobre português filho do Barão de Guaré, que
desentendendo-se com sua família veio para o grupo dos turcos a convite dela. A
terceira grande família dos turcos, os Ferrabrás, são chefiados por Douro, a
francesa Joana D'Arc, filha adotiva do Rei da Turquia.
Rei Sebastião, o Rei português
desaparecido em Alcácer-Quibir é dos encantados mais antigos da Mina, tem seu
reino encantado submerso na praia dos Lençóis, onde acredita-se que se
desencantar “porá abaixo o Maranhão”.
Légua Boji, chefe do Terecô -
Tambor da Mata, religião da região de Codó, interior maranhense - é um vodum
cambinda que entrou na mata. Antônio Luís, o
Corre-Beirada, “farrista” de Pai Euclides que comanda o Bumba-boi da
casa, um filho de D. Luís Rei de França que deixou o trono pela boemia.
Rei Surrupira do Gangá é o chefe
de outra grande família de indígenas, que também vêm como caboclos, e tem um
ritual bastante complexo específico para eles: O Canjerê, ou tambor de Borá.
Todas essas estórias e inúmeras
outras refletem a imensa teia de relações sociais da comunidade “do santo”. Pai
Euclides Talabyan, chefe da casa, é um babalorixá internacionalmente conhecido,
autor de três livros sobre cultura afro-brasileira e iniciador de dezenas de
país de santo espalhados por todo o Brasil. Chefia com esmero a enorme família
dos filhos, sobrinhos e netos de santo, de sangue e de afinidade, que junto com
os voduns e encantados que carregam engendram uma convivência social que não só
harmoniza de maneira tão complexa quanto natural os planos social e espiritual,
mas também permite a eles exercerem seus talentos de músicos, dançarinos,
cantores excelentes que são.
A Casa Fanti Ashanti, em
atividade, desde 1954, é um verdadeiro centro de cultura popular maranhense,
onde num calendário anual repleto, se realizam com capricho e rigor uma grande
quantidade de manifestações sagradas e profanas como os toques de Tambor de
Mina, Candomblé, Cura/Pajelança, Baião de Princesas, Samba Angola, Mocambo,
Bancada, Avaninha, Encruzo, tambor de choro, almoço dos cachorros, tambor de
crioula, tambor de taboca, bumba-boi de baixada, carimbó de caixa, queimação de
palhinhas, festa do Divino, ladainhas, procissões e inúmeros outros rituais
internos.
Os cantos são chamados doutrinas,
são de uma clareza surpreendente. São melodias matrizes da nossa música
popular, pequenas contas que como os Cocos, Sambas de Roda e outros cantos,
formam esse fio que nos guia e nos protege.”
Casa das Minas
A Casa das Minas é um dos templos
afro-brasileiros mais tradicionais, sendo talvez um dos únicos que se
consideram basicamente jeje (Fon), e que, de acordo com investigações
realizadas há mais de trinta anos por Octávio da Costa Eduardo (1948),
relaciona-se provavelmente com a família real de Abomey, capital do antigo
Reino do Daomé , na atual República Popular do Benin. Estabelecida em São Luís
do Maranhão, na primeira metade do século XIX, a Casa das Minas é um dos mais
antigos terreiros de cultos afro-brasileiros, possuindo grande prestígio no
meio religioso afro-maranhense. Este prestígio faz com que ela seja respeitada,
temida e talvez por isso mesmo pouco conhecida. É considerada a casa-mãe de
outros terreiros de tambor de mina do Maranhão e da Amazônia, constituindo-se
num dos modelos de organização religiosa afro-brasileira.
Atualmente a Casa das Minas
possui cerca de uma dezena de vodunsi ou filhas-de-santo, quase todas com mais
de 60 anos de idade. Um número reduzido, se comparado à maioria dos outros
grupos de tambor de mina, ou com aquele encontrado na própria casa: à época de
mãe Andresa, por exemplo, chegava-se a ter numa mesma festa mais de cinqüenta
vodunsi, diversas delas filhas-de-santo desde criança.
Em relação às mudanças, fala-se
que a casa é muito conservadora, não aceitando inovações em seus rituais. As
vodunsi dizem que não querem que a casa se transforme num terreiro beta, ou num
centro de umbanda, e não aceitam entre elas pessoas que recebam caboclos, mas
apenas as que têm um vodum jeje-nagô. Ainda segundo a tradição, as filhas da
casa não podem ter dançado antes em outros terreiros e até mesmo os tocadores
de lá não podem tocar em outras casas, “para não misturar o toque”. Fala-se que
antigamente as chefes das outras casas mandavam para lá os que tinham vodum
jeje, como até hoje as de lá continuam mandando procurar outras casas aos que
não têm vodum de lá. Embora comente-se que, atualmente, as outras casas já não
procedam mais assim, querendo ter entre seus filhos-de-santo pessoas que se
dizem com santo jeje, considerado mais nobre e de maior prestígio no meio
religioso.
Nos últimos vinte anos, entraram
na Casa das Minas, como vodunsi, apenas cerca de meia dúzia de pessoas. Destas,
três não freqüentam a casa pois “foram entregadas”, como se diz, por terem
antes freqüentado outros terreiros, tendo, com isso, sofrido várias doenças, principalmente doenças mentais. Entre as
outras três vodunsi, uma que também estava louca morreu logo, outra vive fora e
comenta-se que pretende abrir uma casa no lugar onde vive, o que é considerado
pelo grupo como uma heresia. Apenas uma delas dança regularmente, há uns quinze
anos, sendo considerada novata e inexperiente. Há mais de vinte anos também não
se têm realizado “festas grandes”, com o oferecimento dos sacrifícios de
animais a todas as atividades da casa, o que é muito dispendioso. Sempre há um
pretexto para que se adie a festa para outra oportunidade. Alegam, por exemplo,
que não podem assumir todas as despesas com a festa, ou então que morreu uma
das vodunsi, estando a casa de luto, ou que uma pessoa importante da casa
encontra-se doente. Há ainda outras justificativas, como a proximidade com a
data prevista para outra festa muito trabalhosa, ou o estado de saúde da pessoa
que lidera o grupo, o que a impediria de participar. Enfim, sempre há um
pretexto. A despeito deles, as vodunsi dizem que apreciam fazer uma festa
grande para que venham novas filhas, mas, ao mesmo tempo, evitam fazê-la,
apesar de saberem que há pessoas amigas dispostas a colaborar nas despesas.
Algumas vodunsi dizem que houve
no passado tentativas de fechar a casa, mas que ninguém sabe fazê-lo, pois as
fundadoras africanas não ensinaram. Outras dizem que a casa não pode ser
fechada e que o grupo delas não vai acabar. Dizem também que quando todas
morrerem, se não tiverem continuadoras,
a casa ficará para o Estado, que poderá transformá-la numa escola ou num museu.
Recentemente, ao término de uma festa,
observamos uma das vodunsi derramando água, do quarto dos santos, no local onde
se sentam os tocadores, dizendo que elas estão necessitando de novos tocadores.
Atualmente duas filhas, embora semi-analfabetas, estão freqüentando um curso de
francês e um curso de extensão na
universidade, sobre língua e cultura Fon. Elas têm a intenção de, com alguma
ajuda de fora, irem à África, pois pretendem aprender lá alguns rituais que
foram perdidos pelo grupo. Os vodunsi consultados dizem que elas podem ir e
aprovam tal iniciativa, mas são de opinião que, provavelmente, não irão mais
encontrar o que procuram, e que na própria casa elas têm tudo de que precisam.
Em 1974, uma chefe do grupo, já
falecida, sem consultar as demais vodunsi, doou algumas peças da casa,
inclusive um tambor grande, para um museu que estava sendo organizado pelo
governo, em troca de alguns consertos no prédio. Alguém comentou, referindo-se
à pessoa e ao próprio grupo, que este gesto era como uma espécie de suicídio
cultural. Nos últimos três ou quatro anos têm sido feitas reformas no prédio,
com ajuda solicitada por pessoas do grupo e executadas com recursos
provenientes de órgãos públicos. Atualmente tem crescido o interesse de pessoas
de fora por esse grupo religioso, como resultado do afluxo turístico, parte
pela divulgação da casa, feita por exemplo através de obras literárias, como Os
tambores de São Luís, de Josué Montello, ou mesmo pela presença de estudiosos e
pesquisadores interessados em religiões afro-brasileiras. Mas na sociedade, de
modo geral, predominam preconceitos contra o tambor de mina, contra a Casa das
Minas e contra outras manifestações congêneres, como coisa de negro e como algo
malévolo.
Como constata Mundicarmo Rocha
Ferretti, em pesquisa que está realizando atualmente com outro grupo de tambor
de mina de São Luís, sobre valores do grupo expressos nos rituais de caboclos,
os rituais do tambor de mina, como em geral dos cultos afro-brasileiros, parece
que não se prestam bem a certos tipos de análises simbólicas de rituais. Por
exemplo, do tipo das propostas por Turner (1972: 12/14), sobretudo no aspecto
operacional ou na maneira em que os símbolos são utilizados pelo grupo, que
descrevem e comentam inúmeros detalhes dos ritos, interpretando os seus
significados. Nas religiões afro-brasileiras, sendo religiões iniciáticas, a
maior parte das explicações dos sentidos simbólicos dos rituais é transmitida
apenas durante os rituais de iniciação e costuma ser considerada como “um
fundamento” secreto, ensinado só aos iniciados. Os demais não têm acesso a este
conhecimento, e nestes grupos a pergunta geralmente é vista como mera
curiosidade malsã. Muitos aspectos da religião são considerados como um
mistério - como também ocorre, por exemplo, no catolicismo divulgado
popularmente no Brasil, com o dogma da Santíssima Trindade ou com o conceito de
Divino Espírito Santo. Nas religiões afro-brasileiras muitos ensinamentos e
conhecimentos são também considerados como um mistério. No tambor de mina do
Maranhão é comum o costume de não se dizer nem mesmo o nome das divindades e de
nomeá-las por apelidos como Pedrinha, Joãozinho, o Branco, o Moço, Rei dos
Mestres, Povo da Rua etc. Dizem que as mais velhas da Casa das Minas eram muito
desconfiadas e não gostavam que as mais novas ouvissem suas conversas e que
muitas vezes, para não serem entendidas, elas conversavam entre si em língua
africana ou com muitas palavras jeje. As mais novas dizem mesmo que, devido a
todo este segredo, muitos conhecimentos do grupo foram perdidos, ou não foram
transmitidos. Elas comentam que nem tudo se pode dizer e que os negros, como os
maçons, nunca dizem tudo o que sabem, pois saber é poder. Elas dizem que
conhecem o significado dos cânticos, pois as mais velhas ensinaram, mas é um
segredo que não pode ser revelado a todos. As palavras ditas nos rituais também
são secretas, pois muitas servem para chamar as divindades. Se por um lado o
grande número de segredos fez talvez com que o grupo perdesse certos
conhecimentos, por outro lado, trata-se de uma estratégia de preservação do
grupo e do que lhe é mais caro e importante, e, portanto, de uma estratégia de
resistência cultural. Ao mesmo tempo, a preservação ciosa dos segredos parece
que é um dos fatores responsáveis pelo grande prestígio da Casa das Minas no
meio religioso afro-maranhense, pois ela é tida como a casa que mais preserva
as tradições dos antepassados africanos no Maranhão.
Constatamos, pois, que na Casa
das Minas a religião é preservada como uma estratégia de resistência do grupo,
que por um lado resiste a inovações, não aceitando que as filhas-de-santo
recebam caboclos e, ao mesmo tempo, que se adapta a certas circunstâncias,
aceitando a colaboração de amigos na arrecadação de fundos para as festas, ou
aceitando verbas públicas para a execução de consertos no prédio, pois a casa
já passa a ser considerada como fazendo parte das tradições culturais da
cidade. Em alguns aspectos há, portanto, uma estratégia de adaptação às
circunstâncias, semelhante, por exemplo, à estratégia do socialismo de algumas
modernas nações da África, em que convivem elementos do capitalismo e do
socialismo. Trata-se de uma estratégia de procura de diálogo, de aceitação de
algumas idéias do outro, procurando preservar alguns princípios mais profundos.
É uma estratégia desenvolvida pelos dominados. Ao nível da consciência dos
membros do grupo, a casa não muda, embora, ao nível da realidade, possam ser
constatadas algumas mudanças pelo próprio grupo, como, por exemplo, a perda de
certos rituais e a tentativa de reavê-los por uma inovação tradicionalista de
uma volta à África, por exemplo. Pode vir a ocorrer na Casa das Minas o que
ocorreu com a capoeira, que perdeu muito de suas características populares de
espontaneidade, por interferência da política cultural do governo, que
modificou inclusive sua filosofia (Areias, 1983: 68).
Fontes:
Tambor de Mina: Texto de Renata
Amaral (contatos: www.maraca.art.br/pedradamemoria / www.acervobarca.com.br /
www.ponto.mus.br )
Bibliografia: A Casa
Fanti-Ashanti e seu Alaxé / Euclides Menezes Ferreira. - São Luís : Ed.
Alcântara, 1987
Desceu na Guma /
Mundicarmo Ferretti. - São Luís : EDUFMA, 2000
Contatos: Casa
Fanti-Ashanti - Rua Militar, 1158 - Cruzeiro do Anil - São Luís - Maranhão
Casa das Minas : Do texto de
Sérgio Figueiredo Ferreti / Universidade Federal do Maranhão in Negro
Brasileiro Negro organizado por Joel Rufino dos Santos. - Revista do Patrimônio
Histórico e ArtísticoNacional, 1997
Por. Adriano Figueiredo Leite - Presidente da ACALUZ
Profº. Diego Bragança de Moura - Historiador da ACALUZ