1. INTRODUÇÃO
A importância da mulher na religião afro-brasileira tem
sido afirmada e demonstrada por muitos pesquisadores, mas há uma carência de
estudos sobre a representação do feminino nas diversas manifestações da
religião afro-brasileira: Candomblé, Umbanda, Batuque, Xangô, Tambor de Mina
e outras. Neste trabalho pretendemos examinar a posição da mulher e das
entidades espirituais femininas no Tambor de Mina do Maranhão e fazer uma
análise de alguns rituais realizados em terreiros de São Luís, para entidades
femininas, procurando ver como a mulher (ou o feminino) é representada
naqueles rituais(1).
2. A MULHER NO TAMBOR DE MINA DO MARANHÃO
No Tambor de Mina - manifestação da religião
afro-brasileira típica do Maranhão e predominante no Norte do Brasil - a
mulher é maioria, tanto como médium de incorporação quanto na chefia dos
terreiros. Esta posição, apesar de maior nos terreiros antigos (que vêm do
século passado) é também observada em terreiros mais novos, onde a Mina
costuma coexistir com outros sistemas religiosos como: Cura ou Pajelança,
Mesa Branca (kardecista), Umbanda e o Candomblé.
Em São Luís, nos terreiros mais antigos, homem não costuma
entrar em transe e, quando recebe uma entidade espiritual, não dança tambor.
Por essa razão, nunca assume a chefia do terreiro, o que justifica a
afirmação da existência de um matriarcado no Tambor de Mina. Embora tenha
havido no Maranhão, no século passado e no início do nosso século, alguns
pais-de-santo que prepararam mães de terreiros importantes, só as mulheres
são lembradas como "pilares" do Tambor de Mina - é difícil alguém
contar a história da Mina sem lembrar os nomes de: Andresa, da Casa das
Minas, Dudu, da Casa de Nagô, Anastácia, do Terreiro da Turquia, Vó Severa,
Nhá Alice, Maximiana e de tantas outras mães-de-santo.
A partir dos anos cinqüenta, houve, em São Luís, uma
proliferação de terreiros abertos por homens (geralmente já integrados no
campo religioso afro-maranhense, como curador/ pajé), mas, mesmo nos
terreiros abertos por eles, a mulher tem maioria e ocupa posições de
destaque. Embora não seja ali a mãe-de-santo, é, geralmente, a guia ou
mãe-pequena e a contra-guia (a segunda e terceira pessoa da casa). Na Casa
Fanti-Ashanti (terreiro aberto em 1958 por Pai Euclides, já conhecido como
curador, e que introduziu ali, em 1980, o Candomblé), todas as posições
hierárquicas logo abaixo do pai-de-santo são ocupadas por mulheres e, quando
realizamos ali nosso trabalho de campo (1984-1987), 90% dos participantes dos
toques de Mina e 80% dos participantes do Candomblé eram do sexo feminino
(FERRETTI,M.R., 1993).
A posição das entidades espirituais femininas nos
terreiros de Mina da capital maranhense parece, no entanto, inferior à das
masculinas, sejam elas vodum, orixá, gentil (nobre associado a orixá) ou
caboclo. Além delas serem numericamente inferiores e de, geralmente,
permanecerem "em terra" por menos tempo que as masculinas, as
entidades femininas não são recebidas em todos os rituais, e poucas são
"donas" de terreiro ou da cabeça dos filhos-de-santo. Na Mina, a
maioria das entidades espirituais recebidas como "donas da cabeça"
ou guia-chefe (seu representante na linha de caboclo), pertence ao sexo
masculino e, raramente, um terreiro tem como chefe espiritual uma entidade
feminina. Embora o nome dos terreiros nem sempre reflita suas crenças e
valores atuais, parece significativo que, num levantamento de terreiros
maranhenses realizado por Maria do Rosário e Manuel Santos (SANTOS e SANTOS
NETO, 1989), enquanto 60% dos terreiros de Mina da capital eram dirigidos por
mães-de-santo, menos de 20% dos que têm nome de santo ou de entidade
espiritual tinham nomes femininos (Iemanjá, Rainha Rosa, Chica Baiana, Maria
Bogi, Cabocla Ita, Nossa Senhora da Guia, Santa Bárbara).
Na Casa das Minas-Jeje (terreiro considerado o mais antigo
do Maranhão), embora o transe com vodum feminino tenha a mesma duração e
ocorra nos mesmos rituais em que ocorre o das entidades masculinas,
atualmente, só Abê está sendo recebida, o que significa que, atualmente, mais
de 90% das vodunsis da casa entram em transe com vodum masculino (Dossu,
Lepon, Averequete, Jotim, e outros). No passado, no entanto, eram também
recebidas ali, pelas vodunsis-gonjai (com iniciação completa) as tobôssis -
entidades femininas infantis (meninas) que, embora não fossem "donas da
cabeça", eram recebidas, com orgulho, fora do "toque", nas
festas e obrigações grandes.
Na Casa de Nagô (fundada por africanas, no século passado, como a Casa das
Minas-Jeje, onde se recebem orixás, voduns, gentis e caboclos) embora não
haja uma festa ou ritual só para entidades femininas, elas são incorporadas,
principalmente, na festa de Santa Bárbara e na Bancada (ritual realizado na
quarta-feira de cinzas, onde há grande distribuição de doces e frutas, de que
nos ocuparemos mais adiante, neste trabalho). Na Casa de Nagô, embora as
entidades femininas e os gentis participem dos toques, nunca ficam "em
terra" até o encerramento dos rituais. Depois de algum tempo, costumam
"dar passagem" a uma entidade masculina e cabocla, prática também
observada em outros terreiros.
Em diversos terreiros de São Luís, costuma ocorrer uma
festa só para entidades femininas, freqüentemente denominadas tobôssas,
realizada, geralmente, no aniversário da "senhora" do pai ou
mãe-de-santo, ou no dia de uma santa do catolicismo a ela associada: Santana
(associada a Vó Missã ou Nanã), Santa Bárbara (a Maria Bárbara Soeira, a
Iansã e outras), Nossa Senhora da Conceição (a Mãe Maria e a Iemanjá), Santa
Luzia (a linha de princesas da Cura/Pajelança), e outras. Nestes terreiros,
as festas e os rituais para as tobôssas são, geralmente, muito dispendiosos,
pois envolvem luxo, delicadeza e sofisticação - "coisas finas", de
classe alta, e distribuição de alimentos. Entre estes rituais, merecem
destaque: a Bancada e o Tambor das tobôssas, realizados em muitos terreiros
de Mina da capital, onde o feminino e o infantil estão muito associados.
3. BANCADA E TAMBOR DAS TOBÔSSAS ("SENHORAS")
(2)
O termo Bancada designa, no Tambor de Mina, rituais
realizados na Casa das Minas-Jeje, na Casa de Nagô (terreiros de São Luís
fundados por africanos) e em terreiros nelas inspirados, na quarta-feira de
cinzas, onde há grande distribuição de frutas, doces, bebidas, pipocas e
outros alimentos, a pessoas ligadas à religião ou ao pessoal a ela devotado.
Estes alimentos, antes de serem distribuídos, permanecem por várias horas no
quarto de santo e sua preparação envolve a observância de muitos preceitos.
Na Mina-Jeje, a distribuição é feita pelas filhas-de-santo em transe com voduns
masculinos ou femininos e inclui, obrigatoriamente, pipoca,
"azogri" - farinha de milho torrado misturada com açúcar, coco e
feijão torrados (FERRETTI,S.F., 1985 e 1991). Na Casa de Nagô, a Bancada é
realizada pelas filhas-de-santo incorporadas com entidade espiritual feminina
(adulta ou menina, como a Princesa Mira e Diana) ou com entidade masculina
(vodum, como Xapanã, gentil, como Dom João, e caboclo, como Tabajara).
Em outros terreiros de São Luís, a Bancada costuma ser realizada apenas com
entidades femininas, de preferência com as nobres (rainhas e princesas) e,
embora possa ocorrer na quarta-feira de cinzas, realiza-se mais
freqüentemente: 1) no primeiro dia do ano (quando muitos terreiros no Brasil
festejam Iemanjá); 2) no dia 31 de maio ou em outra data de festejo de Nossa
Senhora no calendário católico, como 8 de dezembro (festa de N. Sra. da
Conceição, associada por uns a Iemanjá e por outros a Mãe Maria, e a Oxum);
3) em festa de santa do catolicismo (Bárbara, Luzia, Rosa de Lima e outras). Nestes
terreiros a Bancada é realizada, preferentemente, no aniversário da principal
entidade feminina da casa (geralmente, a "senhora" do pai ou da
mãe-de-santo), quando se rende também homenagem às "senhoras" das
filhas-de-santo.
3.1. Bancada na casa de Santana (São Luís/MA - zona rural)
Na casa de Santana, a Bancada é realizada no aniversário de Rainha Madalena,
no dia 31 de maio. Mas, no dia 12 de dezembro de 1993, realizou-se ali uma
Bancada para a "senhora" de Dona Nenem - filha-de-santo de um terreiro
já desaparecido (de Mãe Irinéia), que está "encostada" ali desde
1969(3). Dona Nenem trabalha na Coliseu, empresa encarregada da limpeza
urbana de São Luís, e zela pelo Terreiro da Turquia com Pai Euclides (da Casa
Fanti-Ashanti) - que assumiu a chefia la casa após o falecimento de sua
fundadora. Embora Pai Euclides e Dona Nenem não sejam filhos da Turquia são
ligados a ele por receberem encantados da família do Rei da Turquia - seu
chefe espiritual.
Santana é uma das muitas mães e pais-de-santo de São Luís
que não se definem como Umbanda e que continuam resistindo ao fascínio do
Candomblé, embora não tenham vinculação com as centenárias casas das Minas e
de Nagô, e tenham iniciado sua carreira como "curador" (na linha de
Cura/ Pajelança). Apesar de ter, há muito, se tornado "mineira",
continua realizando festas e rituais de Cura/Pajelança. Como outros
pais-de-santo de São Luís que começaram a trabalhar como curador, realiza
também, em sua residência, sessões de "mesa-branca" (presidida por
pessoa a ela ligada) e, no sítio, onde fica sediado seu terreiro, a
tradicional festa do Espírito Santo. Além de muito conhecida em São Luís como
mãe-de-santo e "curadeira", é muito procurada como bordadeira.
Santana passa muitas horas do dia e da noite na máquina de costura bordando,
em "Richelieu", as toalhas usadas na guma (barracão) por pessoas de
sua casa e de muitos outros terreiros da capital e do interior do
Maranhão(4).
Segundo informação de Santana (mãe-de-santo), a "senhora" de Dona
Nenem, que nunca "arreara" na Mina, veio nela na Casa
Fanti-Ashanti, quando assistia a um candomblé. Como ela não gosta muito de
Candomblé, resolveu dar sua obrigação na Mina, no terreiro onde é
"encostada". Escolheu para madrinha Dona Celeste, da Casa das
Minas-Jeje, de quem é muito amiga e que se responsabilizou pelo bolo
confeitado e pelas lembranças distribuídas aos convidados (uma cestinha de
flores). Para diferençar aquela Bancada da que é realizada ali no mês de
maio, na festa de Rainha Madalena, com todas as dançantes usando saia de
mesma cor, as participantes usaram saias diferentes.
Encontravam-se no terreiro, além do pessoal da casa, seus
familiares e amigos, muitos vizinhos (moradores do bairro - alguns como
convidados e outros atraídos pelo movimento da casa). Havia também na
assistência pessoas de vários terreiros: da Casa das Minas, do terreiro de
Mãe Elzita (membro do INTECAB, como Dona Nenem, muito amiga de Dona Celeste -
sua presidente), terreiro de Adelmo (pai-de-santo muito ligado a Santana, que
também sentou naquela Bancada para "arreada" de sua
"senhora"). Naquela mesma data (véspera da festa de Santa Luzia)
realizou-se, na Casa Fanti-Ashanti, o Baião - baile de sanfona, com pandeiro
e instrumentos de corda, participado por entidades femininas da linha
Cura"/ Pajelança - princesas e caboclas, descrito por nós em outro
trabalho (FERRETTI, M.R. 1991 e 1993:359).
A "senhora" de Dona Nenem é Rainha Dina, também conhecida na Mina
por Fina Jóia, esposa de Dom João. Foi ela quem determinou tudo na Bancada,
com grande antecedência. Santana, como era de se esperar, sentou com Rainha
Madalena. Didi (dançante do terreiro da Turquia, também encostada naquela
casa), com Menina do Maracujá, Sulica com Flor de Lys, Concita (guia da casa)
com Princesa Flora, Adelmo (pai-de-santo visitante) com Moça Laura, Alice com
Borboletinha, uma dançante da casa, com Linda, e duas outras com encantadas
cujo nome não chegou ao nosso conhecimento.
Não sendo filha da casa, observamos apenas a parte pública do ritual,
realizada no barracão. À tarde, quando chegamos, os tambores (abatás e mata)
estavam no salão, e o altar já estava enfeitado, podendo ser visto entre as
santos as imagens de: Santa Luzia, São João e São Sebastião. Encontramos a
casa cheia de crianças, cada uma com uma sacola de plástico na mão, prontas
para receber os alimentos que lhes seriam ofertados na Bancada. A mesa
começou a ser armada depois da nossa chegada. Primeiro o chão foi forrado com
esteiras cobertas por toalhas brancas e bordadas. Depois, foram trazidos para
o salão, em tabuleiros, bacias, travessas, tigelas e pratos: frutas, batata
doce, amendoim, pipoca, bolos, cocada, mariola, balas, chocolates, biscoitos
e outros alimentos. Em seguida, foram trazidas para o salão, pelas
auxiliares, as garrafas de refrigerante, licor, refresco e de outras bebidas
não alcoólicas. Depois de armada, a mesa foi enfeitada com vasos de flores e,
em torno dela, foram colocadas cadeiras forradas de renda (para as
encantadas) e banquinhos (para as mulheres que iam ajudá-las na distribuição
dos alimentos)(5).
As filhas-de-santo receberam as encantadas antes de virem
para o barracão, longe dos olhos da assistência. Depois de incorporadas,
vieram para uma sala que fica antes dele, onde permaneceram em pé ou
sentadas, por algum tempo, quase em silêncio. Em seguida, foram para o salão,
onde sentaram em cadeiras que lembravam os tronos que são armados nos
terreiros de São Luís, para o Império, na festa do Espírito Santo. Mais da
metade destas cadeiras estavam sendo ocupadas ou guardadas por bonecas (geralmente
grandes e louras). Observamos que, quando as tobôssas sentaram no
"trono", algumas (como Rainha Madalena) colocaram a boneca em pé,
ao lado dele e outras ficaram com ela no colo, mas nenhuma brincou com ela.
Esta relação, que é idêntica à da Princesa Doralice (Troirinha) e sua boneca,
na Cura/ Pajelança da casa de Mãe Elzita, contrasta com a dos erês com sua
boneca, no Candomblé da Casa Fanti-Ashanti.
As tobôssas estavam ricamente vestidas e várias traziam uma manta de miçangas
coloridas, no estilo das que eram usadas na Casa das Minas-Jeje pelas
tobôssis (entidades femininas infantis - meninas), além do capote de seda ou
de renda colocado sobre a blusa em um dos ombros (no estilo das usadas na
Casa Fanti-Ashanti pelas princesas no Baião) e que poderia ser um substituto
do "pano da Costa", usado no Maranhão na Casa das Minas-Jeje, na
festa de pagamento. Para marcar a diferença entre aquela Bancada e a
realizada, em maio, para Rainha Madalena, as saias das tobôssas eram de cores
diferentes e duas delas tinham saia estampada (Fina Jóia, de Dona Nenem, e
Flor de Lys, de Sulica). Adelmo usou calça e túnica de cetim branco e, sobre
esta, manta de miçangas verdes.
No salão, as tobôssas sentaram com suas serventes (moças
ou senhoras), próximo aos alimentos que iam distribuir. Na mesa, em frente a
cada uma delas, havia um bolo confeitado que, apesar de nunca ser dividido no
salão, é sempre colocado na Bancada(6)
A distribuição de alimentos começou pelas crianças, que iam passando, em
fila, com suas sacolas, por cada tobôssa. Ao contrário do que ocorre nas
festas de Cosme e Damião e do Espírito Santo, a distribuição realizada na
Bancada nunca é eqüitativa (umas pessoas sempre recebem muito mais do que
outras), o que é considerado normal, uma vez que decorre de preferências das
encantadas e não das filhas-de-santo. Cada pessoa deveria entrar na fila só
uma vez, mas algumas crianças e adultos entraram mais de uma vez, o que foi
objeto de falatório, mas não foi impedido por ninguém. É possível que alguma
delas estivesse substituindo pessoas que não se encontravam ali ou que não
podiam ir para a fila.
Como estávamos fotografando, vez por outra uma encantada
ou um parente das filhas-de-santo que participavam do ritual, nos solicitava
uma foto. Terminada a distribuição e retirados da "mesa" os bolos
confeitados, as encantadas deixaram o salão e sentaram, com suas bonecas, na
sala onde sentaram antes, aguardando o início do "toque". Enquanto
isso, suas auxiliares dividiam o bolo confeitado e as lembranças da festa
entre pessoas escolhidas pelas encantadas. Observando que três delas não
tinham bonecas (a de Adelmo e a de duas dançantes) e indagando sobre o motivo
desta diferença, fomos informados por uma pessoa da casa que "só as
princesas dançavam com bonecas". Em outra ocasião, Adelmo nos esclareceu
que, em sua casa, as tobôssas não levavam boneca para o barracão porque ele
"achava feio gente grande com boneca".
Logo que a mesa foi desfeita, uma equipe providenciou a
limpeza do local, para que o "toque" pudesse ser iniciado, pois,
apesar das "senhoras" gostarem de dançar, nunca ficam incorporadas
até "altas horas" da noite.
3.2. Tambor das tobôssas na casa de Santana (12/12/1993)
No dia 12/12/1993, após a Bancada da "senhora"
de Dona Nenem, descrita anteriormente, foi realizado um toque de tambor na
casa de Santana. O ritual não começou com "Ibarabô", canto de
abertura da Mina-nagô para Legba ou Exu, e sim com uma saudação ao terreiro,
prática muito adotada em casas abertas por curador:
"Salvar, salvar, terreiro novo de meu pai"
Como de costume, dançou-se as primeiras músicas indo e
vindo em direção aos tambores. Depois, o grupo fez uma roda, e, em seguida
ficou alternando esses dois movimentos básicos de acordo com a
"doutrina" que ia sendo "puxada". Após serem cantadas as
"doutrinas" obrigatórias, cada encantada "puxou" pelo
menos uma "doutrina" falando de si ou reverenciando os donos da
casa ou entidade espiritual de sua família. A dança delas era lenta,
desanimada e sem rodadas - muito diferente da apresentada pelas encantadas do
Baião que estava sendo realizado, naquele momento, na Casa Fanti-Ashanti
(geralmente, caboclas e mais ligadas à linha de Cura/Pajelança). As tobôssas
quase não olhavam para a assistência. Apesar de muitas cantarem com "voz
de criança mimada", nenhuma veio para o barracão com sua boneca.
Durante o toque, Rainha Dina tinha as mãos sempre cobertas pelo capote ou
enroladas na "pana" - lenço grande de cetim, usado principalmente
em terreiros de curadores e no Tambor da Mata (linha de Codó - estilo do
interior do Maranhão). Este procedimento foi também por nós observado em
1993, no terreiro de Pai Jorge Itaci, em "toques" para tobôssas.
Depois de dançarem por algum tempo, as tobôssas "deram passagem"
aos caboclos, que ficaram incorporados nas filhas-de-santo que as receberam
até o encerramento do ritual ou até se esvaziar a última garrafa de bebida
comprada para a festa (como acontece com Seu Beberrão, "caboclo
farrista" de Santana, e com muitos encantados da Turquia).
4. ENTIDADES ESPIRITUAIS FEMININAS NO TAMBOR DE MINA DO
MARANHÃO: TOBÔSSIS E SENHORAS
A importância das entidades espirituais femininas no
Tambor de Mina é uma questão complexa. Sendo em número menor que as
masculinas, recebidas com menor frequência e permanecendo "em
terra" por menos tempo, parecem ter uma importância menor. No entanto,
são recebidas com orgulho pelos "mineiros" e para elas são
realizadas obrigações dispendiosas, festas e rituais especiais, que atraem
para o terreiro pessoas de todas as idades e muitas crianças. E, na Mina-Jeje,
existe um culto especial para entidades femininas infantis, as tobôssis
(meninas), que, apesar de ter chamado a atenção de muitos pesquisadores, está
longe de ser compreendido(7).
Mas, se as entidades femininas têm uma presença tão grande na Mina por que
são tão ausentes no barracão (espaço ritual onde são realizados os toques de
Mina) e por que raramente são "donas da cabeça" ou dos
terreiros?!... Observações realizadas em São Luís tem nos levado à conclusão
que as entidades espirituais femininas raramente são donas de terreiro ou
"da cabeça" dos filhos-de-santo, são minoritárias no barracão, e
permanecem "em terra" por menos tempo do que as masculinas, não por
serem menos importantes, mas, porque são femininas.
Indagando certa vez a Pai Euclides, da Casa Fanti-Ashanti,
por que o Baião (ritual da linha de Cura/Pajelança para entidades femininas)
termina mais cedo do que os toques de Mina e porque as encantadas recebidas
nele não vêm com maior frequência, obtivemos a seguinte explicação: "no Baião
vêm moças de categoria alta, moça volta cedo para casa e não anda saindo todo
dia"...
Apesar da mulher ter na Mina uma posição muito elevada, a
análise de rituais realizados para entidades espirituais femininas recebidas
como "senhoras" mostra que a representação da mulher no Tambor de
Mina parece não se distanciar muito do estereótipo machista de mulher,
expresso claramente nas mensagens do Dia das Mães (segundo domingo de maio,
mês de Maria e de muitas festas para tobôssas) que são veiculadas pelos meios
de massa. Tal como as mães brasileiras, as entidades espirituais femininas
recebidas como "senhoras" são representadas em São Luís como
"santas" (recatadas), rainhas (reservadas), maternais e domésticas,
no que parecem imitar a "Virgem Maria", mãe de Jesus.
Na sociedade brasileira, embora a mulher seja quase sempre
submissa ao homem (que assume a maioria das posições de comando), é,
freqüentemente, apresentada como rainha (do lar), tendo a casa como o seu
verdadeiro espaço de atuação - daí a denominação "rainha do lar".
Apesar desta ideologia não encontrar grande fundamento na realidade dos
terreiros de Mina - chefiados principalmente por mulheres - parece
influenciar a concepção de entidades espirituais femininas, fazendo com que
elas se apresentem ali como subordinadas às masculinas e permaneçam "em
terra" por menos tempo que aquelas.
Na Mina a figura das entidades femininas parece também
associada à fertilidade, como a das Iamí Oxorongá africanas, daí porque, fora
das centenárias casas das Minas-Jeje e de Nagô, o ritual da Bancada (onde há
abundância de alimentos e grande número de crianças) é sempre realizado como
uma obrigação de tobôssa (senhora). A distribuição não eqüitativa de
alimentos na Bancada, em contraste com a realizada nos terreiros nas festas
de Cosme e Damião e do Divino Espírito Santo (do catolicismo popular), aponta
para as matrizes não cristãs da representação feminina no Tambor de Mina.
Mas, se tem poder sobre a fertilidade, tal como as Iamí Oxorongá (AUGRÁS,
1989), não são temidas ou representadas como terríveis, embora, quando
distribuem alimentos, possam dar muito a uns e quase nada a outros.
A análise da Bancada e do Tambor de Tobôssa realizados
fora das Casas das Minas-Jeje e de Nagô, chama atenção ainda para outros
aspectos da representação da mulher no Tambor de Mina. Naqueles rituais as
"senhoras" aparecem, freqüentemente, com bonecas e, não raramente,
exibem um comportamento infantil. Sem querer negar a existência desse traço
nos estereótipos de mulher da sociedade brasileira, gostaríamos de chamar
atenção para a associação havida na Mina entre as tobôssis da Casa das
Minas-Jeje (meninas) e as entidades recebidas como "senhora" em
outros terreiros. Não é por acaso que estas são, genericamente, denominadas
tobôssas e que usam, freqüentemente, a tradicional manta de miçangas das
tobôssis da Casa das Minas(8) ...
O estereótipo de mulher como frágil, dominada e imatura (chorona e manhosa
como uma criança mimada), encontrado em muitos domínios da cultura
brasileira, deve ter contribuído para que a fusão senhora-menina fosse
realizada na Mina quase sem crítica. Fora da reação de Pai Adelmo: "lá
em casa tobôssa não sai com boneca porque acho feio gente grande com
boneca", não encontramos ninguém questionando os traços infantis apresentados
pelas tobôssas (senhoras) nos rituais observados. Mas o comportamento
infantil das entidades femininas recebidas na Mina como "senhora"
torna-se mais compreensível quando se considera a influência exercida pela
Mina-Jeje no Tambor de Mina do Maranhão e a impressão deixada pelas tobôssis
da Casa das Minas-Jeje no meio religioso afro-maranhense(9).
A boneca, que aparece na Bancada e às vezes também no
Tambor de tobôssa, embora possa ser considerada um brinquedo de menina,
parece ser ali um símbolo de feminilidade (daí porque as tobôssas não brincam
com ela). Nos pejis cubanos ela é também encontrada com saias longas e
rodadas cobrindo as jarras de orixás femininos (negras, nas de Iemanjá e
louras ou mulatas, nas de Oxum). Nos terreiros de São Luís, a boneca aparece
também como símbolo de nobreza, tanto na Mina, como na Cura/Pajelança, o que
nos foi explicado por uma senhora no terreiro de Santana: "princesa
dança com boneca"...
Como já foi mencionado, na Bancada as tobôssas recebem um
tratamento principesco e são apresentadas nos toques realizados para elas
como nobres - com vestimentas caras e especiais, comportamento reservado, sem
se misturar com a assistência - bem diferentes das caboclas, que gostam de
cumprimentar a assistência, de dar rodadas no salão e de permanecer "em
terra" após os rituais (as vezes para beber e animar a festa com suas
brincadeiras). Na Mina-Jeje as tobôssis são comandadas por Nochê Naê (a
grande mãe) - vodum da família real que não incorpora - e são tratadas ali
como princesas(10) .
Embora haja pontos em comum entre as tobôssas (senhoras) e
as tobôssis (meninas), é preciso não esquecer que na Casa das Minas-Jeje as
tobôssis não se confundem com voduns femininos, nem mesmo quando esses são
toqüenos (adolescentes) ou desempenham funções análogas às deles. Nunca são
recebidas como "senhoras" (donas da cabeça) como são, por exemplo,
Abê e Nochê Decé (voduns femininos adulto e toqüeno), daí porque não
participam dos toques. São meninas, "sinhazinhas", recebidas apenas
nas festas e obrigações maiores, tanto pelas vodunsis-gonjai que tinham vodum
masculino ("senhor") como pelas que tinham vodum feminino
("senhora"). E são consideradas mais puras e mais próximas às
pessoas do que os voduns (comem, dormem, tomam banho, têm medo de mascarado).
Já as tobôssas recebidas em outros terreiros vêm sempre como
"senhoras" (donas da cabeça ou ajuntó). Na Mina-Jeje os voduns
femininos são recebidos em todos os rituais e permanecem "em terra"
por tanto tempo quanto os voduns masculinos, mesmo quando pertencem à família
real e são toqüenos (adolescentes).
As tobôssis Mina-Jeje parece que também não se confundem
com as meninas recebidas hoje na Casa de Nagô. Além de se afirmar na Casa das
Minas-Jeje que tobôssis (meninas) só existem na Mina-Jeje, antes da Bancada
de 1994, ouvimos de Dona Lúcia (atual chefe da casa) a seguinte explicação:
"nós aqui não temos tobôssi, tobôssi é lá em cima, em jeje, nós temos é
menina"... E ainda, observações do comportamento das entidades
femininas, em rituais atualmente realizados na Casa de Nagô, têm demonstrado
que elas se aproximam mais das "tobôssas" de outros terreiros do
que das "tobôssis" da Casa das Minas. Na Casa de Nagô as entidades
femininas (adultas e meninas) participam de rituais com as entidades
masculinas (Bancada, toque) e são, geralmente, recebidas como
"senhora" (donas da cabeça ou ajuntó)(11) .
Existe ainda uma característica apresentada pelas "senhoras" no
Tambor de Tobôssa que não foi aqui analisada: as tobôssas dançam, geralmente,
com as mãos encobertas. Como na Bancada as "senhoras" são tratadas
como a nobreza na Festa do Divino Espírito Santo (sentam em cadeiras cobertas
por rendas, têm roupas luxuosas, etc) e nesta festa a nobreza usa luvas,
cobrir as mãos pode ser mais um símbolo de nobreza. Mas, as tobôssas com suas
mãos encobertas, lembram também imagens da Virgem Maria com seu manto nas
mãos. A identificação das "senhoras" da Mina com a Nossa Senhora do
catolicismo, religião também professada pelo pessoal dos terreiros de São
Luís, que já foi lembrada, pode também explicar o comportamento recatado e
reservado daquelas encantadas, em contraste com o das caboclas (menos
identificadas com a Mãe de Jesus e com as santas católicas do que as
"senhoras").
5. CONCLUSÃO
A representação da mulher no Tambor de Mina é influenciada
pela ideologia dominante (machismo, catolicismo) mas não pode ser reduzida a
ela. Muitos traços das entidades espirituais do Tambor de Mina só podem ser
bem interpretados levando-se em conta sua origem africana e peculiaridades do
campo religioso afro-maranhense (influências das Casas das Minas e de Nagô,
etc.). Assim, reproduz, em parte, a ideologia dominante na sociedade
brasileira, mas apresenta aspectos que só podem ser bem interpretados
conhecendo-se o contexto específico em que foi produzida.
GRAMSCI (1978), em Literatura e Vida Nacional, chama atenção para a
heterogeneidade do momento histórico e para a existência na mesma época e na
mesma sociedade de obras que refletem as concepções dominantes e outras a
realidade vivida por grupos não hegemônicos. No caso brasileiro, o negro,
além de constituir um desses segmentos não hegemônicos, tem tradições
culturais próprias e estas tradições são encontradas de forma bastante viva
nos terreiros de religião afro-brasileira. Por conseguinte, não se pode
estranhar que representações da mulher no Tambor de Mina de São Luís
reproduzam a ideologia dominante mas reflitam também outras formas de
relações sociais, outros valores e visões de mundo.
Ao mesmo tempo que o culto às tobôssis e tobôssas tem a ver com o matriarcado
da Mina, revela o machismo dominante na sociedade brasileira e tão forte no
Maranhão. Assim, na Mina, as entidades espirituais femininas são objeto de um
culto especial, dispendioso, mas aquelas entidades são recebidas por um número
menor de médiuns, vêm poucas vezes por ano e, fora da Mina-Jeje, permanecem
"em terra" por pouco tempo. Isto significa que, em última análise,
elas deixam o campo livre para a atuação das entidades masculinas. Embora não
se possa dizer que na Casa das Minas-Jeje as tobôssis estão acima dos voduns
toqüenos (adolescentes) e que as tobôssas são superiores às entidades
espirituais masculinas, recebidas como senhores em outros terreiros, há mais
exigências para que elas sejam recebidas. Elas, geralmente, só vêm em quem
tem grau iniciático elevado e nas festas e obrigações maiores ou mais
"finas". Contudo, estão, geralmente, abaixo das entidades
masculinas - que são maioritárias como chefes espirituais de terreiro e como
"donos da cabeça" dos mineiros.
A importância da mulher no Tambor de Mina como mãe de terreiro e
filha-de-santo associada à grande impressão causada pelas tobôssis da Casa
das Minas-Jeje podem ser apontadas entre os fatores responsáveis pelo orgulho
dos "mineiros" pelas suas "senhoras", pela existência nos
terreiros de São Luís de rituais especiais para elas e pelo esmero com que
esses rituais são realizados. Mas a representação da mulher no Tambor de
Mina, embora apresente muitos traços em comum, varia de casa para casa. É de
se esperar que apresente diferenças significativas quando se compara casas
dirigidas por mulher com casas dirigidas por homens, terreiros de Mina
apegados aos modelos das Casas das Minas e de Nagô com terreiros de Mina de
caboclo, terreiros que se definem como Umbanda e terreiros de Mina que
introduziram o Candomblé.
Nas representações aqui analisadas, as entidades espirituais femininas,
recebidas como "senhoras" na Mina maranhense, aproximam-se da
Iemanjá e distanciam-se da Pomba Gira da Umbanda (AUGRÁS, 1989) e
correspondem à mulher onírica (que se opõe à "piranha"), encontrada
por BERLINK (1976) em análise de letras de samba: frágil, graciosa,
desligada, "diferente da mulher que se tem". Com efeito, enquanto
na Mina-Jeje as tobôssis são consideradas mais puras do que os voduns, as
mulheres são vistas como mais sujeitas a impurezas do que os homens, pois,
além do contato com a morte e da atividade sexual (que torna o "corpo
sujo"), são contaminadas pelo sangue menstrual e pelo parto.
Na representação de entidades espirituais caboclas ou não
recebidas como "senhora" ("dona da cabeça" ou ajuntó)
estes modelos se apresentam em graus diferentes e combinados, permitindo a
distinção de um número maior de modelos femininos.
A MULHER NO TAMBOR DE MINA (*)
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sábado, junho 24, 2006
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Mundicarmo Maria Rocha Ferretti (**)
Análise da posição e representação da mulher e das entidades espirituais femininas no Tambor de Mina do Maranhão.
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