Por. Mundicarmo Ferretti
As pessoas sempre se apegam aos lugares onde nasceram e viveram e, quando precisam se afastar deles, costumam retratá-los de forma fantasiosa, como se fossem os melhores lugares do mundo. Na terra natal estão geralmente os seus parentes mortos, os lugares onde ocorreram milagres que foram contados por seus antepassados (aparição da imagem ou de um santo), locais de culto a “almas milagrosas” ou “almas benditas” (de pessoas que viveram ali, a quem se recorre em momentos de aflição) e se encontram pedras, árvores, lagos, ilhas etc. que atestam a veracidade de seus mitos. As pessoas, mesmo quando saem de sua terra natal, costumam voltar a ela periodicamente para rever parentes, amigos e para visitar àqueles lugares sagrados, como ocorre freqüentemente no Brasil em torno do dia dois de novembro, data consagrada aos mortos. A fama de alguns daqueles lugares sagrados às vezes extrapola as fronteiras locais, estaduais, nacionais e, até mesmo, continentais. É por essa razão que tantos vão a Meca, a Jerusalém, a Lourdes e, no Brasil, a Aparecida (SP), Juazeiro (CE), São José de Ribamar (MA).
A transferência de populações de um território há muito tempo ocupado, costuma acarretar a elas não apenas perdas econômicas e materiais e desarticular suas organizações sociais. Pode abalar profundamente suas identidades, causar perdas de tradições culturais e criar para elas vários problemas religiosos. Murilo Santos, no vídeo Terra de quilombo – uma dívida histórica (2004), dá exemplo de um desses problemas, ocorrido com as comunidades negras remanescentes de quilombos de Alcântara, no Maranhão, transferidas da área hoje ocupada pela base espacial para agrovilas construídas para elas. Como aquela população poderia levar para o seu novo local (as agrovilas) o cemitério onde estão os restos mortais de seus antepassados e transportar para lá encantarias tão preciosas para ela? Será que na nova localidade a população removida poderia sentir a proteção espiritual que sentia no seu local de origem? Até que ponto a população transferida admite que os seres espirituais ligados às localidades que ela foi obrigada a deixar irão proteger os seus novos ocupantes (o pessoal da base)? Será que para aquela população os encantados vão se transformar em “assombrações” e passar a perturbar os que chegaram ali sem ter ligação com eles e sem a obtenção de sua licença?
Santuários e encantarias maranhenses.
Quando se fala em lugares sagrados do Maranhão pensa-se logo na cidade de São José do Ribamar, que atrai todos os anos, no mês de setembro, grande número de devotos daquele santo e onde são encontrados na praia muitos barquinhos trazendo bilhetes, retratos e ex-votos de pessoas que receberam milagres dele. A cidade de Ribamar é cheia de mistérios. Conta-se que a igreja construída para São José caiu várias vezes e só ficou em pé quando foi edificada na posição desejada por ele... Mas existem no estado outros lugares de atração religiosa. Em Vagem-Grande, realiza-se uma grande romaria de devotos de São Raimundo e de Raimundo Nonato - vaqueiro santificado pelo povo que viveu e morreu tragicamente no povoado de Mulundus -, daí porque a romaria é participada por grande número de vaqueiros da região. Em Rosário, durante muitos anos, o Sr. José de Paula promoveu uma grande festa em pagamento de promessa a uma “alma milagrosa” - de pessoa que morreu ali numa epidemia de peste. A festa daquela alma milagrosa terminava com um Tambor de Crioula dançado por grupos locais, da capital e de municípios vizinhos, que se revezavam durante a noite toda. E, em Codó, na estrada que vai para Santo Antônio dos Pretos, existe o santuário de Pardinha (garoto pobre e deficiente que morreu atropelado), onde muitos depositam ex-votos e garrafas d´água, em pagamento de promessa.
Mas os lugares sagrados do Maranhão não são apenas aqueles onde apareceram imagens de santos ou onde desencarnou uma alma milagrosa. Várias localidades são conhecidas como morada de encantados - seres mitológicos que, vez por outra, aparecem a alguém em sonho ou em vigília e que baixam nos terreiros de mina, terecô, umbanda e nos salões de curadores e pajés. Esses encantados, recebidos em transe ritual, são também invocados pela população em momentos de aflição. Entre os encantados que comandam o Maranhão, citado no livro do pai-de-santo Jorge Itaci (OLIVEIRA, 1989) podem ser citados:
1) Dom Luís, que comanda a ilha de São Luís e tem sua corte encantada na Baia de São Marco e domina de Ponta d´Areia até a Ilha do Medo;
2) Rei Sebastião cuja encantaria fica na Praia dos Lençóis e que domina do Boqueirão ao Itaqui;
3) Dom José Floriano, que domina o Boqueirão e a “cerca” de Alcântara[3];
4) Rei da Bandeira (João da Mata ou Rei da Boa Esperança), Princesa Doralice, encantados na pedra de Itacolomi;
5) Dom João Soeira (Rei de Minas ou Rei do Juncal), que domina a praia do Calhau;
6) Dom Pedro Angassu, que comanda as matas do Codó.
Nas letras de musicas cantadas nos terreiros maranhenses existem muitas referências a eles e às sua encantarias e também a outros encantados e encantarias do Maranhão. Se pegarmos um mapa do estado e direcionarmos o nosso olhar para a região litorânea que vai da ilha de São Luís em direção ao Pará encontramos várias das localidades referidas nas letras daquelas músicas como locais de encantarias. Na ilha de São Luís: as praias do Itaqui, de Olho d´Água, Ponta d´Areia, São José de Ribamar, apresentadas naquelas musicas como moradas da Princesa Ína, da Rã Preta, da Menina da Ponta d´Areia e de outros encantados. Depois da ilha de São Luís, no meio do mar: o tão temido Boqueirão, onde têm ocorrido muitos naufrágios e onde se acredita que muitos se encantaram, e a pedra de Itacolomi, que pertence a João da Mata, o Rei da Bandeira. São também conhecidos como lugares de encantarias: a Praia dos Lençóis, de Rei Sebastião e as pontas de Mangunça e de Caçacueira, moradas de Mãe d´Água.
Não se deve pensar que, para o povo maranhense que conhece encantado, só existe encantaria no litoral ou na água salgada. Uma das encantarias maranhenses mais conhecidas é a da mata de Codó, no interior de estado, onde reina Dom Pedro Angasso e Rainha Rosa e onde Légua Boji Boa comanda uma grande linha de caboclo. Fala-se também que onde tem mata tem Curupira e vários encantados que assumiram formas de animais: calangos, lagartixas, jacarés, macacos, borboletas, onça e outros. E, tanto na região litorânea quanto no interior, existem rios, lagos, poços e nascentes conhecidos como moradas de Mães d´Água e de encantados que já apareceram a alguém como cobras, peixes, botos e outros animais.
Os locais de encantaria são descritos pelos médiuns como lugares de muita energia, de muito poder, de uma força inexplicável ou como lugares de muito mistério, de muita “mironga”, de muito segredo. Afirma-se que nos principais passam muitas correntes espirituais. Em vários deles existem encontros de águas (do mar com água doce), de rios e matas, e em muitos deles existem pedreiras. Os lugares mais isolados, intocados, virgens concentram mais força. É por isso que se afirma que o turismo e o afluxo de pessoas para aqueles locais pode ser prejudicial. Fala-se que em Alcântara há uma concentração muito grande de forças vindas da África, pois recebeu grande número de escravos, e de forças de lá mesmo.
Ao contrário do que ocorre com os locais de santos e almas milagrosas, a aproximação de encantarias só é permitida a poucas pessoas, as que recebem encantados de lá e foram autorizados por eles. E quem se aproxima de lugares encantados (na águas ou na matas) para fazer uma oferenda ou buscar algo solicitado pelos guias (como pedra, areia etc. para assentar um terreiro), costuma sair de lá sem olhar para trás, pois fala-se que muitos dos que viram encantados ficaram doentes ou morreram logo depois. Adverte-se também que intromissões, curiosidades e profanações de encantarias são severamente punidas, pois quem não pertence às suas linhas é rejeitado pelos donos do lugar. Quem não tem vidência não sabe que às vezes uma duna esconde um palácio e pode querer pisar ou construir uma casa em cima da encantaria, da casa dos donos do lugar. Quem vai a um lugar de encantaria é porque tem um pedido de proteção, de saúde, tem um descarrego, uma firmeza a fazer ou uma promessa a pagar.
As encantarias são apresentadas por pais-de-santo maranhenses como locais de reabastecimento de forças, que às vezes estão definhando por causa de “demandas” ou que precisam ser armazenadas, para que se possam enfrentar as dificuldades que surgem durante o ano. É por isso que procuram fazer ali lavagens de cabeça ou de contas. Explicam que, se uma área daquelas for cercada ou interditada por alguém, há um grande prejuízo para a população e grande risco de ocorrerem ali muitas mortes, como ocorreu no porto do Itaqui e na base de Alcântara. Depois do porto, como não se podia mais entrar livremente na área, os médiuns tiveram que arranjar outros locais para fazer suas obrigações, como deve estar acontecendo em Alcântara. Em São Luís, terreiros que dependem de força da pedra de Itacolomi fazem sua obrigação em uma gruta existente na Ilha, que fica na direção daquela pedra...
Apesar de nem todos acreditarem e cultuarem santos e encantados, ninguém tem o direito de, em nome do progresso, da modernidade ou de seja lá do que for, impedir um povo ou alguém de acreditar neles e de cultuá-los. A identidade de um povo é assentada em suas tradições e a religião ocupa um lugar especial nessas tradições.
Postado Por Adriano Figueiredo Leite - Presidente da ACALUZ
Pesquisa. Diego Bragança de Moura - Historiador da ACALUZ
2 comentários:
Adorei, aprendi muito, não sou espirita, mas aprecio muito, sou maranhense e frequento terreiro de umbanda e mina gosto muito de assistir tambor, me sinto muito renovada quando vou a um tambor.
Adorei, aprendi muito, não sou espirita, mas aprecio muito, sou maranhense e frequento terreiro de umbanda e mina gosto muito de assistir tambor, me sinto muito renovada quando vou a um tambor.
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